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23 Dec 2020
A Presidência Portuguesa da União Europeia

O que faz e para que serve

Em bom rigor, é da presidência do Conselho da União Europeia (UE), ou Conselho, que se trata, a instituição que representa os governos dos Estados-membros (EM) e tem como principais competências a adoção de atos jurídicos e a coordenação das políticas europeias. O Conselho não se confunde com o Conselho Europeu, instituição composta pelos chefes de Estado e de governo, cuja função consiste em definir as prioridades europeias e a orientação política geral.

Desde o início do processo de integração, a presidência do Conselho é assumida rotativamente por um EM pelo período de seis meses (tudo começou com a Bélgica, em 1958). A presidência tem uma dupla função política e administrativa, sendo esta a organização e gestão do funcionamento das formações do Conselho.

Durante o semestre, o país em causa preside às reuniões do Conselho, em todos os seus níveis e composições, com exceção da formação dos negócios estrangeiros (presidida pelo Alto Representante para os Negócios Estrangeiros, presentemente o espanhol Josep Borrell); recebe do país que o precedeu os trabalhos em curso e transmite-os ao que se segue na função; e cabe-lhe dar impulso político aos vários dossiês em discussão, em conformidade com o programa do trio de presidências (ver abaixo) e o seu próprio programa.

O Tratado de Lisboa estabeleceu uma nova organização baseada no trabalho conjunto de três países que consecutivamente exercem o cargo, os quais estabelecem um programa para 18 meses. Começamos por analisar, em seguida, o programa da responsabilidade do trio constituído por Portugal, Alemanha (presidência anterior) e Eslovénia (seguinte).

 Agenda estratégica para a Europa - de 1 de julho 2020 a 31 de dezembro 2021

A primeira constatação é a centralidade da pandemia de COVID-19 no programa para os três semestres iniciados a meio de 2020.  O documento que o apresenta resume-o bem:

“As três presidências tudo farão para reforçar a resiliência da Europa, para proteger os nossos cidadãos e para ultrapassar a crise, preservando em simultâneo os valores e o modo de via europeu”. Crise sanitária e crise económica, ambas ainda por vencer.

O programa assenta nos princípios do mapa para a recuperação (“A roadmap for recovery”), de 22 de abril 2020, baseado na solidariedade, coesão e convergência, para uma recuperação flexível, ágil e evolutiva, inclusiva e respeitadora dos valores europeus e do Estado de Direito. No âmago deste modelo económico europeu para o futuro, situam-se a reparação e o aprofundamento do mercado interno, danificado pela pandemia; o prosseguimento das transições verde e digital; o apoio às PME’s e start-ups; a construção de infraestruturas resistentes, em particular na saúde, e o aumento da produção de bens estratégicos, que permita reduzir a dependência europeia. E salienta-se a realização de uma União da Energia focada na sustentabilidade e na transição para a neutralidade climática, ativo fundamental no esforço de recuperação.

Nesse âmbito, são centrais os conceitos de soberania digital e de autonomia estratégica da União Europeia, assente nomeadamente numa política industrial dinâmica. Merece relevo a afirmação seguinte, constante do programa: “a transformação digital é algo que vai moldar o dia-a-dia na Europa, mas é também algo que a Europa pode moldar”.

A recuperação, entretanto, depende de um investimento sem precedentes, baseado em objetivos comuns e focado nas necessidades. O programa refere um Fundo de Recuperação (FR) ligado ao quadro financeiro plurianual da União (QFP), fundo esse na altura apenas uma promessa – concretizada amplamente em julho. Quer o FR, sob forma de Programa de Recuperação e Resiliência, quer o QFP, só foram desbloqueados em dezembro, mas o seu volume e natureza – empréstimo solidário, assente num lançamento obrigacionista garantido pelo orçamento europeu – representam em si mesmo uma revolução de enorme impacto e significado.

O programa sublinha ainda a dimensão global da UE, com responsabilidade na conceção e realização de uma resposta à pandemia através do multilateralismo e de uma ordem internacional assente no direito. Num tempo ainda de administração norte-americana hostil à ideia, o objetivo era mais esperança do que meta atingível; a expectativa, entretanto, é de uma mudança que efetive um multilateralismo profícuo e responsável.

No plano interno, e na linha do estabelecido no mapa para a recuperação, prevê-se o desenvolvimento do sistema de governança da União, tornando-a mais resiliente, eficaz e eficiente, sempre no respeito dos valores fundamentais.

O programa contempla o reforço do pilar europeu dos direitos sociais, para enquadrar uma Europa justa e social, incluindo a realização da Cimeira Social Europeia em maio de 2021, sob presidência portuguesa. E coloca forte expetativa na Conferência sobre o Futuro da Europa, ainda que não seja fácil perceber o caminho a seguir para que não se torne mais uma reunião de vontades inconsequentes, num tempo (ainda) de pandemia e pragmatismo pouco sensíveis a proclamações de boas intenções.

O programa aborda também a relação futura com o Reino Unido. À data da sua aprovação, era ainda possível a extensão do prazo para um acordo – essa possibilidade expirou no final de junho -, tendo em vista uma relação baseada no equilíbrio de direitos e obrigações e na garantia de uma plataforma de igualdade (“level playing field”).

O documento aborda muitas outras matérias: a proteção das liberdades dos cidadãos europeus, incluindo um mecanismo relativo ao Estado de direito; o reforço da igualdade e diversidade cultural; um novo pacto para as migrações e um Sistema Europeu de Asilo eficaz; a proteção das fronteiras externas, fazendo funcionar de novo a área Schengen; sistemas de investigação com forte base digital, para acelerar a inovação para o crescimento, a melhoria das competências pessoais, da educação e da saúde; o Horizonte Europa e Erasmus+; e a promoção dos interesses e valores europeus no Mundo. Uma palavra especial para o ambiente, em linha com os objetivos do Acordo de Paris, e para a relevância atribuída ao Novo Plano de Ação da Comissão para a Economia Circular.

Um programa para muitos anos, como se pode compreender, impossível de concluir em 18 meses, e muito menos num semestre.

Entre a presidência alemã e a portuguesa

Uma presidência alemã é uma presidência alemã, um dos dois grandes motores tradicionais da integração europeia, da qual se espera sempre eficácia e eficiência.

Este ano, no entanto, tudo foi mais difícil. A pandemia impediu a concretização de muitos dos objetivos dos germânicos, como reconheceu há alguns dias a própria Chanceler Ângela Merkel. Ainda assim, vários resultados ficam a assinalar este primeiro semestre do trio alemão-português-esloveno. Dois assumem particular relevância:

- A aprovação, em julho, e o desbloqueamento, em dezembro, do Fundo de Recuperação, associado ao regulamento da condicionalidade do Estado de Direito. A Europa vai dispor dos recursos para ajudar os mais necessitados dos seus cidadãos, através de um modelo inédito de tomada de dívida garantida pelo orçamento da União, ilustração última e poderosa da solidariedade europeia.

- A transição climática, com o objetivo da redução do gás com efeito de estufa até 2030 a subir de 40 para 55% (em relação a 1990). Uma decisão histórica, ambiciosa, pela qual, afirmou Merkel, “valeu a pena perder uma noite de sono”.

Mas houve muitos dossiês inacabados, decisões por tomar, progressos por obter. É o caso das migrações/refugiados, com uma proposta da Comissão pendente. A relação com a Turquia, no seu conflito com dois Estados-membros, a Grécia e Chipre, ficou igualmente por resolver, com a tímida tomada de posição do Conselho Europeu de dezembro a constituir uma desilusão (mas não uma surpresa).

E agora, Portugal?

Vários objetivos previstos no plano do trio tornam-se agora preocupações portuguesas. E Portugal decerto deixará dossiês por encerrar para a presidência eslovena.

Qual é então o programa da presidência portuguesa e que objetivos prossegue? A resposta encontra-se no sítio Internet e no próprio programa da presidência. São cinco as grandes prioridades, alinhadas com a agenda estratégica da própria União:

- A resiliência europeia, com o acento na recuperação pós-pandémica, através do aumento do investimento e a recuperação da economia (incluindo a execução eficiente e eficaz dos QFP e PRR), e o reforço da solidariedade e dos valores. Os planos nacionais serão essenciais para essa recuperação, ocorrendo uma parte importante da sua avaliação, coordenação e concretização durante o semestre da presidência portuguesa.

- A Europa social, visando a melhoria do modelo social europeu e da coesão social; destaque para a Cimeira Social de maio como meio de debater a dimensão social para a retoma da economia, a transição digital e climática e o reforço do pilar europeu dos direitos sociais.

- A Europa Verde, âmago da primeira grande transição, promovendo o pacto ecológico, a economia azul e as políticas energéticas e de transportes.

- A Europa digital, a outra – e gémea – transição, com o ambicioso objetivo de promover a liderança europeia na economia digital, desenvolvendo ainda o conceito da democracia digital.

- E por fim, mas não por menos, a Europa global. Em destaque o multilateralismo, os mecanismos de regulação da globalização, a resposta conjunta a crises e emergências humanitárias, atenção especial às relações com África e o reforço da relação com a Índia (uma Cimeira deve ter lugar durante o semestre, estando marcada para maio, assim o permita a pandemia); recorde-se que em dezembro teve lugar a Cimeira Tecnológica Índia-Portugal, organizada pelo governo da Índia, com excelentes resultados. Na relação global da UE têm também um papel crucial o relacionamento – é utilizada a palavra parceria – com o RU (assim o permita o acordo sobre as relações futuras); e as relações transatlânticas com o país que é, nas palavras do Alto Representante para os Negócios Estrangeiros, o principal parceiro estratégico da Europa – os Estados Unidos.

Outros assuntos, objetivos da presidência alemã mantidos em aberto por força das circunstâncias, passam também para a presidência portuguesa: é o caso das migrações, quer na ótica dos refugiados quer dos migrantes económicos, questão por resolver, de enorme importância para a Europa, de difícil solução, com atenção redobrada às fronteiras externas e ao papel de agências europeias, como o Frontex, Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira, com responsabilidade crescente na proteção das fronteiras externas do espaço de livre circulação europeu, com particular ênfase no combate à criminalidade transfronteiriça e no controlo das migrações.

O que restar para negociar do Brexit, será naturalmente parte da agenda do Conselho, e por isso objeto da atenção da presidência.

O mesmo se aplica à pandemia e à coordenação das políticas sanitárias, no contexto da crise sanitária ainda longe de encerrada, com a vacinação na primeira linha. Tudo dependerá, naturalmente, da evolução do surto e da capacidade de imunizar a população europeia num prazo tão curto quanto possível.

No plano político permanecem a insegurança e instabilidade no mediterrâneo ocidental, com as relações com a Turquia em destaque; no plano externo, o relacionamento com a nova administração norte-americana será um ponto alto na agenda europeia (ambos os temas são partilhados entre a presidência e o Alto Representante para a Política Externa), na expetativa de um encontro com o Presidente eleito ainda durante o semestre. E é inevitável referir o terrorismo, as ameaças à segurança europeia, os populismos e outros temas que, sendo a agenda baseada em planos e programas preparados com antecedência, não deixarão de se impor se as circunstâncias o exigirem.

São talvez demasiados e muito complexos os objetivos para um período de seis meses, alinhados em grande parte com a agenda europeia e o programa do trio. Mas também é certo que Portugal já por três vezes presidiu à União Europeia.

Os nossos diplomatas, funcionários, peritos e responsáveis têm grande experiência na gestão de dossiês complicados e contam com a confiança das instituições e decisores europeus. Serão seis meses exigentes, mas que se espera concluídos com sucesso e avanços substanciais na melhoria da integração europeia e da vida dos seus cidadãos.


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