Ursula e Charles de acordo
Apesar das críticas, em grande parte injustas – como sublinhámos em números anteriores – as instituições europeias têm trabalhado arduamente para responder às preocupações dos europeus com a pandemia COVID-19. E na quarta-feira passada, dia 15, os Presidentes da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen e do Conselho Europeu, Charles Michel, apresentaram o “Mapa Europeu Conjunto” (Joint European Roadmap) sobre o levantamento das medidas de contenção.
Do que se trata?
Na sequência do solicitado pelo Conselho Europeu de 26 de março, define-se uma estratégia coordenada entre a União Europeia (UE) e os Estados-membros (EM) para a saída do estado de confinamento, preparando condições para um “plano de recuperação abrangente com um investimento sem precedentes”. Começa por avaliar as medidas de contenção tomadas pelos EM; todos proibiram concentrações públicas, fecharam total ou parcialmente as escolas e restringiram viagens e a passagem das fronteiras. Mais de metade proclamou o estado de emergência.
Com que consequências? Tensões sociais, mudanças radicais no dia-a-dia, choques económicos severos, limitação do mercado interno e da liberdade de circulação de pessoas. Os Estados intervieram, a União também, para contrabalançar o impacto. As medidas eram e são necessárias, mas não podem durar indefinidamente. Importa planear o recomeço das atividades económicas e sociais, salvaguardando a saúde das pessoas, o que exige uma abordagem integrada ao nível europeu e entre os EM. Num esforço de coordenação indispensável foi preparado este documento, com recomendações concretas.
Que estratégia? Os critérios
O confinamento resulta, todos os estudos o comprovam: adia a disseminação da pandemia, diminui a pressão sobre os sistemas de saúde e reduz a mortalidade. Qualquer relaxamento obrigará à monitorização constante e ao reajustamento e reintrodução de medidas, sempre que necessário.
O vírus veio para ficar, pelo menos até que uma vacina eficaz se generalize.
As recomendações do roadmap, baseadas no conhecimento científico à data, deverão ser revistas à medida que novos dados forem sendo conhecidos. E cabe a cada EM, isto é muito importante, decidir o grau ou nível de cumprimento de cada um dos critérios relevantes para determinar se chegou a altura de começar a relaxar o confinamento. São eles três, segundo o documento:
1. Epidemiológicos, mostrando uma redução significativa e sustentada no tempo da propagação da doença (o célebre R0, mas também o número de doentes em cuidados intensivos).
2. Capacidade do sistema nacional de saúde (SNS) em termos de ocupação de unidades de cuidados intensivos e camas, produtos médicos e estruturas de cuidados primários disponíveis, apoio aos doentes domiciliários. De notar a importância da capacidade de dar resposta às necessidades de saúde distintas das relativas à COVID-19.
3. Capacidade de monitorização apropriada, isto é, de testar em larga escala a população, identificar focos de contágio e isolar os casos de reaparecimento. Inclui a capacidade de mapear a imunidade adquirida, através da deteção de anticorpos específicos para COVID-19.
Que estratégia? Os princípios
A natureza integrada do mercado interno é relevante – podem mudar datas, prazos e as modalidades país a país, mas deve haver um enquadramento comum, pois a disseminação do vírus não pode ser contida por fronteiras e as medidas afetam cadeias de valor muito integradas, sistemas de transporte transfronteiriços e a livre circulação. São três os princípios recomendados:
1. Tendo a saúde pública como objetivo primordial de curto e longo prazo, deve ser a ciência a base para a tomada das decisões de levantamento das medidas restritivas.
2. Ações devem ser coordenadas entre os EM, no mínimo através de notificação entre si (e com a Comissão), antes do anúncio das medidas.
3. Respeito e solidariedade entre os EM. Aponta exemplos concretos de solidariedade e apela à sua continuação. Deve ser tido em conta que o impacto não é o mesmo em cada país.
Que estratégia? As medidas que devem acompanhar o levantamento das medidas restritivas
1. Coligir tantos dados quantos possível e criar um sistema de informação sólido. Usar modelos matemáticos para compreender a disseminação, usar redes sociais e redes móveis para intercâmbio de dados sobre mobilidade e interações sociais e para detetar sinais precoces de infeções. No respeito da proteção de dados e da privacidade, de forma agregada, esses dados permitirão modelar e prever de forma eficiente.
2. Criar um modelo para detetar contactos de risco e facilitar os alertas usando apps (“mobile tracing and warning”, a desativar quando a crise termine). É uma proposta controversa, mas o roadmap deixa claro que devem ser respeitadas as regras sobre privacidade e uso de dados. O uso das aplicações será complementar (de outras medidas) e voluntário.
3. Expandir os testes à população (nesta matéria Portugal está bem colocado), incluindo os serológicos (e, a prazo, de kits de autoteste, desde que de fiabilidade reconhecida) desenvolvendo as capacidades de diagnóstico, garantindo o mútuo reconhecimento entre os EM, nomeadamente através do alinhamento das metodologias.
4. Aumentar a capacidade e resiliência dos sistemas de saúde, também usando recursos financeiros do orçamento europeu, incluindo a contratação de pessoal.
5. A disponibilidade de equipamento médico e de proteção deve ser reforçada, nomeadamente coordenando os fornecimentos no plano europeu. E a Comissão dará um acompanhamento antitrust (“antitrust guidance”) para conforto das empresas envolvidas em processos de cooperação em certos ecossistemas para evitar ruturas nesses equipamentos.
6. É crucial uma vacina e a Comissão coopera com a Agência Europeia do Medicamento para acelerar o processo dos ensaios clínicos à comercialização, em segurança.
7. Também o desenvolvimento de tratamentos alternativos ou adicionais é desejável, financiando a União a identificação em medicamentos existentes de moléculas ativas potencialmente benéficas, através do uso de supercomputadores e I.A.
Em suma: como levantar gradualmente as medidas de contenção
1. Uma ação gradual, com distância entre as principais medidas (um mês?).
2. Substituir medidas genéricas por orientadas – proteger mais tempo os grupos mais vulneráveis; manter em quarentena os infetados, mesmo benignos; pôr em prática medidas alternativas, desde que seguras, às medidas mais restritivas; retirar aos poucos os países de estados de emergência gerais, sempre no respeito pela lei e os direitos fundamentais.
3. Levantamento progressivo de medidas do nível local para níveis geograficamente mais largos.
4. Preparar a abertura faseada das fronteiras, internas e externas, sendo este um dos aspetos mais delicados do documento. Abrir as fronteiras internas de forma coordenada. As fronteiras externas abrirão apenas numa segunda fase, incluindo o acesso de não residentes na UE.
5. Fasear o recomeço da atividade económica, grande exigência de largos sectores de que foi exemplo em Portugal a carta dos 159: “a população não deve voltar toda ao local de trabalho ao mesmo tempo” – começar pelos grupos de menor risco e em sectores essenciais para a atividade económica. Em distanciamento social e teletrabalho sempre que possível.
6. Também a possibilidade de reuniões de pessoas deve ser progressivamente reintroduzida. O roadmap indica várias categorias, como escolas e universidades, comércio (gradual), festivais, concertos, etc. O mesmo se aplica aos transportes, começando a redução pelo transporte individual.
7. Campanhas de informação para encorajar a manter as práticas protetoras (higiene, distância social, uso de máscaras, considerado positivo, embora complementar aos restantes procedimentos, sendo sempre prioritário o seu uso por trabalhadores da saúde).
8. Monitorização permanente das ações. Caso o surto recrudesça, o regresso a medidas estritas deve poder ser rápido e eficiente, com base num plano formal e critérios explícitos.
Em suma, recomenda o roadmap, quanto ao levantamento das medidas de restrição:
Conselho científico, coordenação e solidariedade na UE, através de uma abordagem equilibrada, coordenada e gradual. Recomenda-se aos EM o uso de instrumentos postos à sua disposição ao nível europeu. A Comissão avisa que pode intervir em defesa do mercado interno europeu, caso considere desproporcionado o levantamento das medidas de contenção. O objetivo é evitar “spill-overs” (contágios…) negativos entre os EM e o reforço mútuo das suas capacidades. Medidas necessárias serão discutidas e financiadas ao abrigo do Instrumento de Apoio de Emergência, a pedido dos países interessados.
Um levantamento bem-sucedido das medidas de contenção terá um impacto positivo na recuperação da UE, conclui o documento.
A questão que resta, perguntamos nós, é se os vários EM terão vontade e capacidade para agir em conjunto, seguindo as recomendações da Comissão ou, pelo contrário, se persistirão em abordagens exclusivamente nacionais. Neste caso, não tenhamos dúvidas, a responsabilidade será assacada à “Europa”, como se a Europa – a União Europeia –, passada a inércia inicial, não fizesse todos os esforços possíveis por lograr uma efetiva coordenação e solidariedade europeias, na medida dos recursos e capacidades de que dispõe e sem exceder as suas competências.