1. Um acordo longe de mais?
Os alarmes soaram nos primeiros dias de setembro, e o Brexit voltou às primeiras páginas dos jornais. Com um ano consumido pelas notícias sobre a pandemia, este regresso surpreendeu. Mas se as negociações vinham a arrastar-se, foram as notícias sobre o Acordo de Saída –“Withdrawal Agreement” (W.A.) – a causar emoção.
Primeiro, David Frost, negociador por parte do Reino Unido (RU), disse numa entrevista rara que o país não será “Estado-cliente” da União Europeia (UE). Boris Johnson declarou o dia 15 de outubro data-limite para evitar uma saída sem acordo. E foi o Financial Times (FT) a dar a notícia sobre a lei do governo britânico que renegava aspetos específicos do WA, sobretudo relacionados com a Irlanda do Norte (IN).
As reações vieram de muitos lados, alguns improváveis, como a campanha de Joe Biden. A quebra da confiança causada pela denúncia unilateral de um tratado internacional, ou de partes dele, levou a Presidente da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen, a alertar para as consequências; David Sassoli, presidente do Parlamento Europeu (PE), sublinhou que a confiança é a chave do acordo para o futuro; o deputado europeu Christophe Hansen referiu o respeito pelo W.A. como “litmus test” das negociações.
Algumas nações britânicas – as “devolved nations”, Gales, Escócia e Irlanda do Norte -, chamam-lhe “assalto frontal à devolução” (Sturgeon, Ministra Principal da Escócia): Westminster “sacrifica o futuro da união através do roubo de poderes às devolved administrations”. E o secretário para a IN, Brandon Lewis, admitiu que os planos do governo violam a lei internacional “num modo muito específico e limitado”…
O que está em causa resume-se em meia dúzia de palavras: a proposta de lei do mercado interno britânico (“Internal Market Bill”) altera partes do W.A., tratado internacional vinculativo nos termos do direito internacional dos Tratados, no que se refere à IN.
Irá o RU violar obrigações assumidas há menos de 9 meses, pondo em causa qualquer hipótese de acordo comercial entre o RU e a UE após 31 de dezembro de 2020? Antigos PM britânicos Major e Blair indignaram-se, membros do partido conservador lembram que o respeito pelo primado da lei é um pilar fundamental da identidade britânica, mas a proposta foi aprovada, em 2ª leitura, nos Comuns – parlamento britânico. Segue-se o debate em comissão e eventuais emendas, antes de uma decisão final.
2. Encontro de vontades entre o RU e a UE: o acordo de saída
Começamos por recordar, em linhas gerais, o que está em causa no acordo assinado entre a UE e o RU em 24 de janeiro (veja-se aqui), que permitiu a saída deste no final desse mês.
A segurança alimentar, SPS e os produtos industriais com grau de risco de entrar no espaço da União, serão objeto de controlos nos pontos de entrada. Aplica-se a taxa aduaneira europeia quando os produtos possam vir a entrar na UE via fronteira da Irlanda. E aplica-se a legislação europeia em matéria de IVA quando houver acesso à UE. No outro sentido, as exportações da IN para a GB cumprem as formalidades europeias. O RU determina as condições de entrada.
A “governança” do acordo assenta no W.A. Joint Committe (J.C.), que continuará a funcionar durante o tempo necessário. O protocolo para a IN aplica-se após o período de transição caso um (eventual) acordo comercial não o substitua. E pode ter duração limitada: o mecanismo de “consentimento” prevê que a Assembleia da IN (“Stormont”), após 4 anos de aplicação (e depois, a prazos regulares), possa decidir (por maioria simples) não o manter.
Outros aspetos relevantes deste protocolo, no que respeita à IN: continuam a aplicar-se as regras europeias sobre liberdade de circulação, o compromisso de não diminuição dos direitos decorrentes do Acordo de 1998 e a cooperação norte-sul em várias áreas.
3. Porquê o impasse? E pode a nova lei britânica, sendo aprovada, impedir um acordo para o futuro?
A acompanhar o W.A. está uma declaração política sobre a relação futura. Convém não esquecer que o período de transição foi acordado sobretudo para permitir que os termos dessa relação pudessem ser discutidos em profundidade e com ponderação; estava mesmo previsto que pudesse ser alargado, mas o PM britânico apressou-se a dizer que prescindia desse alargamento, que não poderá já ter lugar.
Ao anunciar com pompa e muita circunstância que não cumprirá, unilateralmente, partes do W.A., através de uma lei que o Parlamento britânico teria de aprovar (já o fez, na Câmara dos Comuns, em 2ª leitura), o governo criou um obstáculo a um acordo satisfatório para o futuro.
Mas o que está então em causa?
A nova lei - “Internal Market Bill” (IMB ou Bill) - regula o mercado interno do RU. Transfere poderes para as quatro nações do RU em áreas como os padrões alimentares, sanitários e outras, e harmoniza regras de supervisão e controlo. Cria um Gabinete para avaliar as condições em que a regulação se fará, propondo regras de reconhecimento mútuo entre as administrações “devolvidas” (o que está a ser muito criticado pelos responsáveis dessas administrações).
A lei do mercado interno consagra o acesso irrestrito dos produtos da IN ao mercado britânico, limitando o controlo europeu. E restringe a aplicação das regras europeias sobre ajudas de Estado (será o RU a decidir em que condições é obrigatório notificar a EU, contrariando o W.A.). Ambos os pontos infringem o previsto no acordo.
Por outro lado, e de acordo com o FT, na lei das Finanças (“Finance Bill”), instrumento jurídico de apresentação do orçamento do país que será apresentado em outubro, estará previsto que o RU defina os produtos da GB a entrar na IN que podem ser considerados “em risco de entrar no mercado interno europeu”, sujeitos à tarifa europeia.
Para complicar mais o cenário, sensivelmente na mesma altura em que estas informações vieram a público, Boris Johnson anunciou que as negociações devem estar concluídas até 15 de outubro (data do Conselho Europeu), sob pena de não haver acordo. Isto é, estabelece um prazo, ao mesmo tempo que lança a confusão sobre o acordo de saída, anteriormente assinado pelas partes, e que é, como os líderes europeus, de Von der Leyen a Merkel e Macron, se apressaram a sublinhar, condição sine qua non da realização do acordo para o futuro. Até como tática negocial é excessivo…
As negociações sobre o futuro das relações entre o RU e a UE após o final do período de transição, em 31 de dezembro, têm estado paralisadas sobretudo em torno de dois assuntos – pescas e ajudas de Estado. Essa paralisação impede que se avance noutras matérias. A nova situação complica o desbloqueio dos principais pontos de desentendimento, tendo-se concluído as rondas negociais recentes sem qualquer avanço relativamente a um possível acordo de comércio livre.
A UE reagiu rapidamente ao plano britânico: o vice-presidente da Comissão Maroš Šefčovič (co-presidente do J.C.) deu ao governo britânico um prazo até ao final do mês para rever a legislação em causa. Michael Gove respondeu dizendo que o RU não dará resposta ao ultimato. E a Comissão ameaça usar todos os meios legais disponíveis face à violação do direito internacional.
Não julgamos que se chegue a tanto. Um processo de litigância desta natureza duraria anos e é de difícil e incerto desfecho. Antes disso, tornar-se-ia, aliás, inútil, já que as relações futuras teriam de ser definidas, por ação ou inação.
A verdade é que a lei britânica terá dificuldades em passar o crivo parlamentar britânico. A reação das administrações das outras nações britânicas – em particular Escócia e Gales – foi muito negativa. Dos EUA chegam, vindos do campo democrata, avisos e preocupação e Nancy Pelosi afirma que não haverá acordo comercial RU-EUA em caso de violação do direito internacional.
Entretanto, o IMB foi aprovado em 2ª leitura nos Comuns, mas com número considerável de abstenções e votos contra de relevantes membros dos “tories” (num total de 32). Na próxima semana se saberá que emendas serão aprovadas, sendo relevante a de Bob Neill, antigo ministro e presidente da comissão parlamentar de justiça, que obriga o governo a apresentar as medidas polémicas sobre a IN perante os Comuns apenas em caso de absoluta necessidade, perante o falhanço das negociações, por exemplo, e sujeitas a votação na câmara. Mas se Johnson tem uma maioria confortável nos Comuns, nos Lordes a situação é diferente e mesmo a emenda Bob Neill pode não ser suficiente para fazer passar a lei.
A União podia ter reagido ao anúncio das “possíveis” violações do acordo de saída suspendendo ou terminando as negociações comerciais. Não o fez, apesar dos avisos sobre a importância da confiança e respeito pela palavra dada. No fundo, parece aguardar que o RU dê os próximos passos, seguindo com particular atenção o processo parlamentar britânico. Um acordo de comércio livre sem que o W.A. seja respeitado dificilmente passará no Conselho Europeu e, sobretudo, no Parlamento Europeu.
Em resumo, nada está decidido, nem num sentido nem noutro. As táticas negociais do atual governo britânico, e em particular do seu líder, ficaram claras no processo que, no ano passado, levou à conclusão do acordo de saída – agora em causa.
Na nossa opinião, tudo pode não passar de um contrair de músculos para o braço de ferro cujo desfecho ocorrerá nas próximas semanas. Um acordo comercial justo e benéfico para ambas as partes, que mantenha ao mesmo tempo a paz na frente irlandesa, tão duramente conquistada, ainda é possível.
Mas não é fácil.