O apetite aguçado dos mercados financeiros
Nos próximos anos, a União Europeia deve tornar-se um dos maiores emissores mundiais de obrigações com o rating máximo AAA.
Esta semana, uma emissão de “obrigações sociais” para financiar o programa SURE por parte da Comissão Europeia – a primeira vez que se verifica uma emissão europeia deste nível - teve uma procura 13 vezes superior à oferta. Foram subscritos 17 mil milhões de euros, de um total de 100 mil milhões que deverão ser emitidos para financiar este programa, que serão agora disponibilizados sob a forma de empréstimos aos países interessados. Eis como a Comissão ilustra a distribuição já aprovada de 87,8 mil milhões de euros do SURE:
Dado o interesse despertado pela emissão e o nível de procura que se registou, podiam ter sido obtidos mais de 200 mil milhões de euros.
O SURE, recordamos, é um programa de solidariedade europeu que visa apoiar os Estados-membros, através de empréstimos em excelentes condições, nos seus esquemas de apoio temporário e excecional ao emprego no quadro da pandemia. A sua qualificação como “obrigações sociais” destina-se a garantir aos investidores que as verbas obtidas serão destinadas a apoios dessa natureza.
O sucesso extraordinário da emissão – o FT chamou-lhe outrageous (“EU enjoys outrageous demand for first Covid-related bond”) – cria uma grande expetativa em relação às emissões futuras no âmbito do NextGeneration EU.
Serão 750 mil milhões de euros de emissões, concentrados em 2021-24, embora o total de obrigações, considerando todos os programas, deva aproximar-se dos 900 mil milhões de euros – um valor enorme, uma grande responsabilidade, um sinal da pujança e da credibilidade da União Europeia.
Mas há etapas ainda a vencer para que essa emissão seja possível. É esse o caso da legislação que é ainda necessário aprovar, em particular a Decisão sobre os Recursos Próprios, que o Parlamento Europeu adotou em setembro e que o Conselho Europeu terá de aprovar antes da necessária ratificação pelos 27 Estados-membros.
Ora o processo está suspenso, a aguardar o desfecho das negociações sobre o Quadro Financeiro Plurianual (QFP), face às exigências do Parlamento Europeu.
Não tinha de ser assim, na nossa opinião não devia ser assim, mas as razões políticas sobrepõem-se com frequência à razão (e à certeza) jurídica e o risco é forte de que a primeira emissão de obrigações ao abrigo do NextGeneration EU, prevista para meados do ano que vem, possa atrasar-se ainda mais.
Os dados do problema
Como referimos, o Programa Europeu de Recuperação e Resiliência (PRR), no valor de 750 mil milhões de euros (750 MM€), será financiado por uma emissão de obrigações europeias feita pela Comissão europeia.
Desse valor, 560 MM€ serão disponibilizados aos Estados-membros através do Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR), destinado a financiar as reformas e investimentos necessários para cumprir os objetivos no quadro do Semestre Europeu.
O resto das verbas do PRR deverão ser alocadas a instrumentos orçamentais da UE, quer correntes quer específicos para responder às ameaças da pandemia, ou como verbas complementares para programas comuns. No total, 390 MM€ serão disponibilizados como subsídios, 360 MM€ em empréstimos (no caso do MRR, as verbas ascenderão a 310 MM€ em subsídios e 250 MM€ em empréstimos, a preços constantes); cada Estado-membro recebe um montante em subvenções, pré-definido de acordo com uma chave de repartição que considera o número de habitantes, o PIB per capita e a taxa de desemprego.
O primeiro-ministro português já afirmou que Portugal apenas tem intenção de recorrer a subvenções ou subsídios. Para que os países recebam as verbas pretendidas, deverão submeter anualmente, durante os primeiros quatro anos, os respetivos planos de recuperação, no âmbito do semestre orçamental normal, os quais deverão corresponder aos critérios definidos.
O PRR e o MRR constituem o “Next Generation EU” ou “Nova Geração Europa”.
Mas o PRR tem natureza excecional e, em princípio (é bom salientá-lo), não deverá repetir-se. A União Europeia continuará a promover as suas políticas habituais – no âmbito da estratégia traçada pelas instituições europeias - através do seu orçamento, cuja declinação anual assenta num QFP para sete anos, que fixa os limites máximos totais e anuais de despesas autorizadas (e das despesas para pagamentos,), bem como os recursos necessários para o efeito. Esses recursos têm a natureza de recursos próprios desde os anos 70 e mantêm-se estáveis na sua composição desde os anos 80, havendo, contudo, várias propostas para os aumentar (em natureza e valor).
No orçamento europeu cabem todas as políticas comuns, parte assente em apoios diretos aos Estados-membros (através dos fundos estruturais, bem conhecidos), outra parte em programas comuns, geridos em Bruxelas e em geral baseados em concursos públicos ou na apresentação de projetos sujeitos a critérios e regras específicas.
As negociações em curso para o QFP
Ora o Parlamento Europeu (PE), logo após o Conselho Europeu que fechou o acordo sobre o PRR, ainda em junho, contestou a relação entre o reforço dos recursos próprios destinado a esse programa extraordinário – em princípio “one-off”, ou uma vez sem exemplo… – e o financiamento dos programas europeus através do orçamento normal. Os deputados europeus criticaram os cortes em programas centralizados como o Horizon – programa de investigação europeia -, o Fundo de Transição Justa (no âmbito do Green Deal ambiental), o Erasmus, programas na saúde, transição digital, migrações, segurança, entre outros.
O PE considerou que a engenharia financeira que permitiu aos Estados-membros um acordo que é uma verdadeira revolução na forma como a União Europeia se financia e nos montantes envolvidos salvaguarda os planos nacionais à custa dos programas centralizados europeus, enfraquecendo a capacidade europeia no longo prazo.
E, por isso, o PE fez, em setembro, uma proposta de aumento das verbas para 15 desses programas, que considera prioritários, da ordem dos 39 MM€ Além disso, acrescentou três outras exigências: um calendário fixo para definir os novos recursos próprios de que a Europa irá necessitar no futuro; uma maior participação na governação do PRR; e um mecanismo claro e vinculativo na relação entre as verbas a atribuir e o respeito pelo primado da lei (a “rule of law”).
O QFP aprovado em julho é de 1,074 biliões €, a que acrescem os 750 MM€ do PRR. O total de recursos para os próximos sete anos atinge assim os 1,824 biliões €.
Refere o PE que, dos 39 MM€ propostos, só 9 MM€ constituem um aumento real das verbas do QFP, resultando o resto nomeadamente da não consideração dos juros do empréstimo PRR para o teto dos recursos próprios.
Com esse aumento (de 9 MM€), o Quadro Financeiro para os próximos 7 anos alcançaria aproximadamente 1,083 biliões €, verba equivalente à do QFP de 2014-20, ainda em execução. Dessa forma, também se estancaria a queda do orçamento europeu propriamente dito (excluindo, pois, as verbas excecionais do PRR), queda aliás já ocorrida no quadro anterior.
Mas os líderes europeus, de forma muito generalizada, não parece quererem reabrir as negociações sobre valores, que tanto trabalho deram em julho. No Conselho Europeu dos dias 15 e 16 do corrente, deixaram-no claro, tendo Ângela Merkel, na segunda das suas três intervenções, interpelado o Presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli, advertindo-o da indisponibilidade do Conselho Europeu para reabrir o dossiê para lá de “pormenores técnicos”. Sassoli, a crer nos vários relatos que vieram a público sobre a reunião, terá mostrado resignação.
Mas se se resignou no Conselho Europeu, já na terça feira dia 20 de outubro à noite declarou que “o Parlamento Europeu está unido (…) ciente da urgência da situação (…) espera novas propostas da Presidência (do Conselho) para financiamento extra dos programas chave do QFP (…) uma coisa é certa: os custos do Plano de Recuperação não cabem no QFP, porque comprometeriam o valor acrescentado do orçamento de investimento de longo prazo da União Europeia”. E, ponto essencial:
“Novos recursos próprios são essenciais para garantir que os curso do Plano de Recuperação não recaem diretamente sobre os cidadãos europeus”.
Qual é então a expetativa?
Com os ponteiros a correr e as dificuldades crescentes de muitos países, ansiosos por receber as verbas prometidas, a resistência dos deputados europeus pode não durar muito. A expetativa da “bazooka” europeia como arma decisiva contra os efeitos da pandemia é demasiado forte e os custos políticos de um falhanço poderiam ser devastadores para a União Europeia.
A pressão de vários governos sobre os deputados dos seus países tem vindo a crescer e há cada vez mais sinais de recuo por parte de alguns grupos políticos relevantes, em particular do grupo dos Socialistas e Democratas, o segundo maior do Parlamento Europeu. Portugal e Espanha são aliás dos países mais vocais nessa matéria, juntando-se assim à Alemanha, à França (o Presidente Macron salientou que, se uma alteração do plano de recuperação o torna mais frágil, então trata-se de um risco desnecessário) e a vários outros chefes de Estado e de governo.
Na verdade, também o líder do maior grupo político no Parlamento Europeu, Manfred Weber, considera que não deverá ser necessário reabrir o acordo de julho. Haverá então, apesar de posições ainda firmes de alguns deputados, como o relator do orçamento europeu para 2021, margem para manobra através dos “ajustamentos técnicos” a que Merkel fez menção na passada semana?
E poderá o Parlamento Europeu contentar-se com um compromisso nas restantes exigências que fez – em particular na questão da governação do PRR e na cláusula da condicionalidade associada ao primado da lei? Estarão países como a Hungria e a Polónia dispostos a ceder num ponto em que até agora se têm mantido irredutíveis (e em que têm direito de veto)?
Em causa não está só o Quadro Financeiro Plurianual até 2027, em causa está também o PRR para responder aos efeitos da pandemia nos próximos anos.
Em causa, no fundo, está o futuro da União Europeia a meio de uma pandemia que não parece em vias de desaparecer. E os ponteiros do relógio sempre a andar…